19 junho, 2010

Depois de Tarzan

Extraído do editorial do Jornal "O Globo", de 19/06/2010, por Alexandre dos Santos.         

          A Copa do Mundo na África do Sul se mostra uma bela oportunidade para que o público brasileiro receba um tipo diferente de informação a respeito do continente africano, bem diversa daquela que está habituado a ler, ver e ouvir. Em meio a essa grande quantidade de mensagens a respeito das diferenças e semelhanças culturais, sociais e econômicas, me atrevo a dizer que, na média, o saldo da exposição até aqui é positivo por diminuir o preconceito do olhar. A quantidade de conhecimento gerado nesses últimos meses, não apenas sobre a África do Sul, mas também sobre outros países e povos africanos, tem alimentado o questionamento, mesmo que inconsciente, de uma série de clichês sempre associados ao continente e ao cidadão africano em si.
          Um deles se refere ao imaginário. Felizmente poucos ainda associam a África ao mistério e à escuridão das florestas equatoriais, onde vivia o Tarzan de Edgar R. Burroughs. Visão que refletia os mais de quatro séculos de uma produção intelectual e acadêmica europeia que disseminava as inúmeras teorias baseadas na hierarquização das raças, em que o negro estava na base de uma escala de desenvolvimento humano na qual os brancos estavam no topo. “Sabedoria” produzida para justificar a escravidão num primeiro momento, e, posteriormente, a tutelagem e a colonização. A África dos noticiários não é mais essa. Obviamente há problemas como a pobreza, a corrupção, a criminalidade e as altíssimas taxas de infectados com o vírus HIV, além de profundos preconceitos contra a mulher e os homossexuais. Mesmo estes são problemas comuns a diversos outros países, e não exclusivos do continente africano.
          Outro aspecto diz respeito à própria figura do africano como indivíduo e como coletivo. Muitos ainda associam África a fome e guerra. Crianças famélicas e magérrimas, agarradas aos braços finos de suas mães seminuas, com os seios tão murchos e secos como passas. A barbárie dos conflitos interétnicos, dos grupos negros que massacram, torturam e estupram com tanta fúria e naturalidade como se repetissem uma rotina de trabalho diária. Temos visto outra África nos noticiários. Aquela dividida entre pobres, classe média e ricos. Aquela cujos empreendedores sofrem com as mesmas faltas de oportunidad e e chances de qualificação quanto um trabalhador argentino, venezuelano, do sul dos Estados Unidos ou do interior da França. Os massacres em Darfur, o despotismo caquético, a pirataria e a bandidagem ainda acontecem no Sudão, no Zimbábue e na Somália, por exemplo, mas já temos uma noção melhor de que a África não se restringe a apenas esses países.
          O que nos leva a um terceiro aspecto, o de pensar na África como uma sinédoque. Citamos um indivíduo como africano na mesma medida em que nos referimos a um italiano, um chinês ou um iraniano. Ora, não existe maneira menos acurada de se referir a alguém do que chamá-lo de africano pura e simplesmente. Afinal, há tantas semelhanças entre um zulu e um tuaregue, ou entre um xosa e um somali, quanto há entre um argentino e um guatemalteco ou entre um canadense e um paraguaio.
          Estamos vendo uma África diferente nos noticiários. Mais rica e diversa. Mais distante dos velhos clichês. A que contribuiu para a formação da nossa cultura e sociedade e para a qual, ironia das ironias, sempre demos as costas. A mudança no olhar, promovida e refletida pelas equipes jornalísticas baseadas na África do Sul, premia, de alguma forma, a ação de acadêmicos e intelectuais que há tempos se esforçam para tornar mais generoso e acurado um olhar ainda nublado pelo preconceito e pelo etnocentrismo. É ainda um pequeno passo. Mas é um começo promissor.

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